Trauma racial: a ferida que não sangra, mas adoece
- Luciana Tudeia
- 24 de jul.
- 3 min de leitura
Como o racismo cotidiano se transforma em dor psíquica e por que precisamos falar sobre isso na clínica, na escola e nas empresas

Nem sempre o trauma racial é visível. Não deixa hematomas, não causa fraturas expostas, mas marca profundamente o corpo e a mente de pessoas negras.
O racismo, quando vivido de forma constante, não se limita a um episódio isolado — ele se transforma em experiência emocional crônica. O nome disso é trauma racial: uma ferida invisível que compromete a autoestima, o afeto e o direito de viver com plenitude.
Neste artigo, vamos compreender o que é trauma racial, como ele se manifesta, por que é urgente reconhecê-lo como questão de saúde pública e de que forma uma escuta racializada pode promover o início da cura.
O que é trauma racial?
O termo ganhou visibilidade a partir da psicóloga norte-americana Joy DeGruy, que criou o conceito de Síndrome do Pós-Traumático da Escravidão. Em suas palavras:
“Os descendentes de africanos escravizados continuam a apresentar sintomas de trauma multigeracional.”
Ou seja: o trauma racial é herança histórica e vivência cotidiana. Ele se manifesta nas interações sociais, nas relações de trabalho, no corpo escolar e, especialmente, no silêncio do não reconhecimento da dor negra.
Como o trauma racial se manifesta?
Sintomas frequentes do trauma racial incluem:
Ansiedade intensa diante de ambientes brancos e hierárquicos
Medo constante de errar ou ser julgado (hipervigilância)
Sentimentos de inadequação, vergonha ou inferioridade
Insônia e exaustão sem causa aparente
Despersonalização e “apagamento emocional”
Somatizações como gastrites, tensões musculares, queda de cabelo
A escritora bell hooks pontua que “o racismo nos faz desacreditar do nosso próprio valor”. Essa desacreditação é emocionalmente destrutiva e não deve ser tratada como “drama” ou “vitimismo”.
Racismo e trauma transgeracional
O trauma racial não começa no indivíduo — ele é socialmente produzido e historicamente acumulado. A psicanalista Neusa Santos Souza, em Tornar-se negro, explica que o sujeito negro, para sobreviver, frequentemente precisa recalcar a própria identidade racial, gerando tensões internas que afetam seu psiquismo.
Esse trauma, quando não tratado, é transmitido afetivamente entre gerações. Um avô que silenciou sua negritude para proteger os filhos. Uma mãe que ensinou a filha a “não chamar atenção”. Um jovem que sente medo ao ocupar espaços de poder.
Segundo Frantz Fanon, isso é resultado de uma sociedade colonizada onde o negro é forçado a viver como estrangeiro de si mesmo.
A clínica como espaço de enfrentamento
Uma clínica racializada não neutraliza o trauma racial. Ela o reconhece, nomeia e trabalha sua elaboração.
Isso implica:
Não desqualificar os relatos de racismo como exagero;
Compreender os mecanismos psíquicos de sobrevivência diante da violência racial;
Conectar o sofrimento individual a uma lógica coletiva e estrutural.
A terapeuta negra se torna, nesse contexto, testemunha qualificada da dor, rompendo o ciclo de silenciamento que perpetua o adoecimento.
Falar sobre trauma racial não é buscar culpados — é buscar caminhos de cura. A violência do racismo é real, mas também é real a possibilidade de reconstrução afetiva, política e identitária.
Trauma racial se cura com escuta, nomeação e dignidade.É hora de deixar de ignorar o que nos adoece e construir espaços que validem o direito das pessoas negras à saúde mental plena.
Referências bibliográficas
DeGruy, Joy. Post Traumatic Slave Syndrome. Uptone Press, 2005.
Souza, Neusa Santos. Tornar-se negro. Graal, 1983.
hooks, bell. Tudo sobre o amor. Elefante, 2020.
Fanon, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA, 2008.
Carneiro, Sueli. A construção do outro como não-ser. Tese, USP, 2005.








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