top of page

Quando dizer “não” vira um desafio: limites, culpa e sobrevivência

Por que pessoas negras carregam dificuldade em impor limites — e como a psicanálise afrocentrada pode ajudar a reconstruí-los


ree

Quantas vezes você quis dizer “não”, mas não conseguiu?

Quantas vezes sentiu culpa por não atender a uma demanda, mesmo estando esgotada?

Quantas vezes sentiu que precisava estar disponível — mesmo quando isso te custava a saúde?

Para muitas pessoas negras, especialmente mulheres, a dificuldade de impor limites não é apenas uma questão de autoestima: é um mecanismo de sobrevivência psíquica num mundo que historicamente as desumanizou.

Neste artigo, vamos refletir sobre como o racismo, o sexismo e o trauma moldam essa dificuldade de negar, e como o processo terapêutico pode ajudar na reconstrução da autonomia emocional e afetiva.


O corpo negro como território de uso

Desde o período colonial, corpos negros foram transformados em ferramentas: para o trabalho, para o cuidado, para a servidão. A psicanalista Neusa Santos Souza, em Tornar-se Negro, nos mostra que essa funcionalidade imposta aos corpos negros gera marcas profundas no psiquismo:

“O negro aprende que sua existência é aceita quando está em função do outro.”

Esse ensinamento — implícito e explícito — transforma-se num padrão relacional:

  • Ser solícito para não parecer rebelde;

  • Dizer sim para evitar rejeição;

  • Assumir tarefas demais para provar valor;

  • Evitar confronto para não confirmar estereótipos.

Esse padrão tem nome: submissão racializada. E ele adoece.


A culpa como ferramenta de controle

A escritora bell hooks, em Tudo sobre o amor, fala sobre a culpa como uma emoção socialmente construída para manter estruturas de poder. Para mulheres negras, a culpa surge como castigo por ousar priorizar-se, por não querer mais cuidar de todos, por não aceitar relações desequilibradas.

Essa culpa tem raízes profundas:

  • No racismo que nos ensinou a nos calar;

  • No machismo que exigiu sacrifício sem reciprocidade;

  • Na lógica cristã-colonial que glorifica a abnegação.

Frantz Fanon, em Pele Negra, Máscaras Brancas, aponta que o sujeito colonizado internaliza a ideia de que deve agradar para ser aceito. Esse mecanismo molda nossa afetividade — e a dificuldade de colocar limites é um reflexo disso.


Quando o “não” é impossível, o corpo adoece

A negação de si, quando constante, se transforma em dor. Literalmente. A ausência de fronteiras subjetivas leva ao desgaste emocional e físico:

  • Exaustão e irritabilidade;

  • Insônia e ansiedade;

  • Sensação de sufocamento ou invisibilidade;

  • Distúrbios psicossomáticos como dores, gastrite, tensão muscular.

O corpo começa a dizer o que a voz não pôde. E muitas vezes só na crise é que a pessoa negra se permite buscar ajuda. A clínica, nesse momento, pode ser um espaço de reabilitação emocional — mas também de reeducação afetiva e política.


A psicanálise afrocentrada como espaço de reconstrução

Dizer “não” exige reconhecer que se tem valor mesmo quando não se está disponível. Exige confiar que ser amada não depende de desempenho. Exige, sobretudo, entender que a recusa também é afeto.

Na clínica racializada, isso se trabalha através de:

  • Nomeação das experiências de silenciamento histórico;

  • Reconstrução do sentimento de merecimento;

  • Elaboração da culpa como sintoma do racismo;

  • Resgate da autonomia como potência política.

Audre Lorde dizia que “o silêncio não nos protege”. Mas também não protege o sim constante, a doação excessiva, a ausência de limites. O que nos protege é a escuta, a consciência e o afeto comprometido com a verdade.


Impor limites não é falta de amor — é amor próprio.Dizer “não” é também uma forma de dizer sim:Sim ao seu tempo.Sim ao seu corpo.Sim à sua saúde.Sim à sua história.

Você não está aqui para se apagar — está aqui para existir inteira.


Referências bibliográficas

  • hooks, bell. Tudo sobre o amor. Elefante, 2020.

  • Fanon, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. EDUFBA, 2008.

  • Souza, Neusa Santos. Tornar-se negro. Graal, 1983.

  • Lorde, Audre. Sister Outsider. Crossing Press, 1984.

  • Carneiro, Sueli. Escritos de uma vida. Companhia das Letras, 2023.

 
 
 

Comentários


bottom of page