A solidão de quem cuida de tudo: o peso da responsabilidade nas costas das mulheres negras
- Luciana Tudeia
- 13 de ago.
- 3 min de leitura
Quando o “dar conta de tudo” adoece — e por que precisamos reconstruir redes de apoio para viver com dignidade

A mulher negra, historicamente, foi transformada em símbolo de força. Não como elogio, mas como estratégia de sobrevivência num país onde sua dor é constantemente negligenciada.“Você é forte.” “Você sempre aguenta.” “Você vai conseguir.”Essas frases são como grilhões doces — amarram com gentileza, mas ainda aprisionam.
Neste artigo, analisamos a construção social da mulher negra como cuidadora universal, os impactos disso em sua saúde mental e as possibilidades de reconstrução afetiva e política a partir do autocuidado, da escuta e do direito ao descanso.
A romantização da força
Desde o período colonial, a mulher negra foi representada como um corpo destinado ao trabalho e ao cuidado dos outros. A figura da “mãe preta”, como bem descreve Lélia Gonzalez, surge da necessidade de construir um modelo de servidão afetiva: uma mulher negra abnegada, disponível, amorosa — mas invisível em sua dor.
Sueli Carneiro, em A construção do outro como não-ser, pontua que a mulher negra ocupa o lugar do “outro do outro”: ela não é a referência de humanidade nem do homem branco, nem da mulher branca, nem do homem negro. Ela é aquela de quem se espera doação permanente.
Essa expectativa transbordou para os dias atuais. A mulher negra contemporânea é vista como aquela que:
Sustenta a casa sozinha;
Cuida dos filhos, dos pais, dos irmãos;
Lidera projetos no trabalho e na comunidade;
Está sempre disponível para escutar, acolher, apoiar.
E quando não dá conta, a culpa aparece. A dor aparece. O cansaço se instala.
A dor que não tem onde pousar
bell hooks, em Tudo sobre o amor, afirma que muitas mulheres negras aprenderam a se doar antes mesmo de saberem o que é serem amadas. Amor, para muitas, foi sinônimo de sobrevivência, e não de cuidado mútuo.
Essa trajetória gera consequências emocionais graves:
Ansiedade crônica;
Falta de sono reparador;
Dificuldade em pedir ajuda;
Medo de parecer “fraca”;
Sentimento de solidão, mesmo cercada de pessoas.
A psicanalista Neusa Santos Souza nos alerta que mulheres negras internalizam o racismo como uma ferida narcísica. E essa ferida é reaberta quando a sociedade cobra sua força como dívida.
Redes frágeis e vínculos unilaterais
A mulher negra não adoece apenas pela sobrecarga de tarefas, mas pela falta de reciprocidade nos vínculos. Em muitas relações — afetivas, familiares, profissionais — ela é o esteio. A base. A fortaleza.
Mas quem cuida de quem cuida?Quem acolhe quando ela colapsa?
Segundo Nilma Lino Gomes, o racismo compromete a possibilidade de relações verdadeiramente horizontais. A mulher negra é frequentemente responsabilizada pelo bem-estar coletivo, mesmo sem o suporte necessário para seu próprio cuidado.
A clínica como espaço de descolonização afetiva
Uma clínica racializada precisa considerar essa estrutura. Não se trata apenas de escutar a demanda individual, mas de compreender que a dor de não poder falhar é coletiva e histórica.
Isso implica:
Nomear o racismo e o sexismo como causas estruturais de sofrimento.
Validar o cansaço como consequência legítima da sobrecarga.
Trabalhar o sentimento de culpa ao colocar limites.
Ajudar a reconstruir relações onde ela também possa ser cuidada.
Cuidar de si é um ato político
Audre Lorde já dizia que o autocuidado não é luxo, é sobrevivência. Para a mulher negra, descansar é revolucionário. Dizer não é revolucionário. Priorizar-se é revolucionário.
Descansar não é desistir — é resistir de outra forma.É reconhecer que você não veio ao mundo apenas para servir. Você veio para existir plenamente. Com dignidade, prazer, saúde e pertencimento.
A mulher negra que cuida de tudo também tem o direito de ser cuidada.Que as clínicas, escolas, famílias e empresas entendam isso como uma urgência. Que a força deixe de ser uma prisão e se torne escolha. Que o descanso não seja visto como falha, mas como recomeço.
Você não precisa carregar o mundo nas costas para provar seu valor.Seu valor já existe — e merece espaço, tempo e afeto.
Referências bibliográficas
hooks, bell. Tudo sobre o amor. Elefante, 2020.
Souza, Neusa Santos. Tornar-se negro. Graal, 1983.
Carneiro, Sueli. A construção do outro como não-ser. Tese, USP, 2005.
Gonzalez, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira.
Lorde, Audre. Sister Outsider. Crossing Press, 1984.
Gomes, Nilma Lino. Movimento negro e educação. Autêntica, 2017.17.








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