Meu corpo não é só resistência: prazer, descanso e presença como revolução
- Luciana Tudeia
- 27 de ago.
- 3 min de leitura
O direito de existir para além da luta: quando corpos negros escolhem viver com leveza, afeto e liberdade

“Ser negro é resistir todos os dias." Essa frase é verdadeira — mas também perigosa. Porque quando resistir vira o único verbo possível, viver vira exceção. E corpos negros não podem ser apenas trincheiras.
Este artigo é um manifesto por outra forma de existência: aquela em que pessoas negras não são convocadas somente à dor, à força, à denúncia, à batalha. Mas sim ao prazer, ao descanso, à alegria — como direito inegociável e como prática de liberdade radical.
Corpos negros sob vigilância
O corpo negro, desde o início da colonização, foi vigiado, controlado e usado como instrumento. Essa história não ficou no passado: ela vive nos olhares desconfiados, nas revistas “aleatórias”, na sexualização precoce, no racismo estético, na pressão para ser produtivo a todo custo.
Frantz Fanon, em Pele Negra, Máscaras Brancas, descreve como a colonização afeta a corporeidade do sujeito negro. O corpo se torna um campo de batalha — e frequentemente o prazer é substituído pela defesa. A existência, então, se torna sobrevivência.
Kabengele Munanga acrescenta que a negação do corpo negro também se manifesta nas representações sociais — onde o negro é visto como perigoso, animalesco ou exótico, mas quase nunca como humano, sensível, digno de afeto e descanso.
Prazer como rompimento do ciclo da dor
Para Audre Lorde, o prazer é mais do que sensorial — é político.
“O erótico é um recurso interior, uma fonte de poder e informação.”
Nesse sentido, permitir-se sentir prazer é romper com a lógica colonial que nos quer mutilados da emoção, da ternura, da alegria. É dizer: “meu corpo me pertence — e ele também merece sentir prazer, calma, liberdade, amor.”
Descanso não é luxo, é reparação
A filósofa Tricia Hersey, criadora do Nap Ministry, defende o descanso como ato de justiça social para pessoas negras. Em sua prática, ela afirma:
“Fomos escravizados e privados de sono por séculos. Agora é hora de parar. Dormir é resistência.”
Essa perspectiva precisa chegar às clínicas, escolas e empresas. O descanso não é preguiça — é resistência regenerativa. Ele é parte do que bell hooks chama de amor político: o cuidado radical por si e pela comunidade como prática antirracista.
O corpo como lugar de presença e não só de performance
A sociedade neoliberal racializada exige que pessoas negras “compensem” constantemente:
Seja produtivo.
Seja resiliente.
Seja exemplo.
Seja forte.
Mas o corpo não foi feito apenas para performar. Ele foi feito para ser. Estar presente, sentir o agora, respirar fundo sem culpa — tudo isso é também cura.
Neusa Santos Souza nos lembra que o processo de tornar-se negro é também um reencontro com o próprio corpo. Um corpo que pode ser leve. Pode ser bonito. Pode ser amado. Sem precisar se justificar.
Práticas para se reconectar com o prazer e o descanso
Agendar o descanso como prioridade.
Permitir-se sentir prazer sem culpa.
Recusar demandas que violentam seus limites.
Celebrar os momentos simples.
Reconfigurar a relação com o corpo como território de prazer — e não só de luta.
Na clínica psicanalítica afrocentrada, isso se traduz em escuta, validação e reconstrução de uma subjetividade que possa desejar — e não só reagir.
Pessoas negras não nasceram apenas para resistir. Nasceram para dançar, gozar, rir, descansar, amar, existir. E esse direito precisa ser protegido, incentivado e celebrado.
Prazer, descanso e presença são formas legítimas de luta. Mas mais do que isso: são formas legítimas de viver.
Referências bibliográficas
Lorde, Audre. Sister Outsider. Crossing Press, 1984.
Fanon, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. EDUFBA, 2008.
Munanga, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Vozes, 1999.
hooks, bell. Tudo sobre o amor. Elefante, 2020.
Souza, Neusa Santos. Tornar-se negro. Graal, 1983.
Hersey, Tricia. Rest is Resistance: A Manifesto. Little, Brown Spark, 2022.








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