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“Não sei mais quem eu sou”

Identidade, apagamento e reconstrução emocional na vida de pessoas negras


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“Não sei mais quem eu sou.” Esse é um desabafo frequente nos processos clínicos com pessoas negras. A sensação de desconexão com a própria identidade não surge do nada. Ela é produzida por uma história de apagamento sistemático, onde a subjetividade negra foi sendo silenciada em nome da sobrevivência.


Desde a infância, pessoas negras aprendem a ocultar partes de si para serem aceitas. O cabelo que precisa ser domado, a fala que precisa ser polida, o corpo que precisa se conter. Como afirma Grada Kilomba em Memórias da plantação (2019), esse processo de performatividade constante é uma forma de violência psíquica. O sujeito negro passa a existir para o olhar do outro, e não para si.

A identidade, nesse contexto, se fragmenta. Neusa Santos Souza (1983) descreve essa experiência como uma fratura subjetiva: somos ensinados a rejeitar o que somos para sobreviver ao racismo. Esse mecanismo leva à dissociação — vivemos, mas não nos sentimos vivos.


A dor do não-pertencimento

A ausência de pertencimento é uma dor central. Pessoas negras que frequentam espaços majoritariamente brancos, como universidades e empresas, costumam relatar a sensação de não saberem onde é “casa”. Esse deslocamento é constante, e produz sofrimento.

Frantz Fanon, em Pele Negra, Máscaras Brancas (2008), aponta que a experiência negra na diáspora é marcada pela constante tensão entre a imagem imposta e o eu real. O sujeito negro precisa lutar contra os estereótipos para existir de forma plena.


Reconstruir-se é um ato político

A reconstrução da identidade passa por um processo de escuta, acolhimento e resgate. Na clínica afrocentrada, o objetivo não é apenas tratar sintomas, mas devolver ao sujeito a possibilidade de narrar sua história com voz própria.

Esse caminho envolve revisitar a infância, entender como o racismo atravessou os vínculos familiares, e, sobretudo, legitimar o afeto negro. Reconhecer os traumas é o primeiro passo para curá-los.


Dizer “eu sou” é um ato de coragem para quem foi ensinado a se calar. A psicanálise afrocentrada oferece uma escuta que reconhece a dimensão coletiva da dor negra, mas também aposta na potência da reconstrução. É possível se reencontrar. E esse reencontro, mais do que individual, é ancestral.


Referências

·         Kilomba, Grada. Memórias da plantação. Cobogó, 2019.

·         Santos Souza, Neusa. Tornar-se negro. Graal, 1983.

·         Fanon, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. EDUFBA, 2008.

 
 
 

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