Quando a fala é preta, a cura é profunda
- Luciana Tudeia
- 24 de jul.
- 3 min de leitura
Psicanálise afrocentrada e a urgência de uma escuta que reconheça o racismo como estrutura de adoecimento

Por muito tempo, os espaços de cuidado emocional — clínicas, consultórios, escolas, centros de saúde — foram construídos sob a lógica branca, eurocentrada e desracializada. Isso significa que os sofrimentos específicos da população negra foram, durante séculos, silenciados, deslegitimados ou patologizados.
Mas quando uma mulher negra fala da dor de se calar na reunião de trabalho, da vergonha sentida na infância por causa do cabelo, ou da exaustão de ter que ser forte o tempo inteiro — ela está falando de um sofrimento político, histórico e coletivo. E esse tipo de dor exige mais do que escuta técnica. Exige escuta racializada.
Esse é o ponto de partida da psicanálise afrocentrada — uma clínica que não apenas acolhe a fala preta, mas a reconhece como ponto de cura e de potência.
O silenciamento como ferramenta de opressão
Segundo Neusa Santos Souza, em Tornar-se negro (1983), o sujeito negro sofre uma cisão na construção de sua identidade, pois é obrigado a se perceber a partir do olhar branco — um olhar que o rejeita, inferioriza e estigmatiza. Essa experiência não é neutra: ela adoece.
Ser negro no Brasil é aprender, desde cedo, que a sua existência é indesejada em muitos espaços. E como consequência, é aprender também a calar. A silenciar dores, revoltas, dúvidas, afetos.
E quando a fala preta finalmente emerge, muitas vezes ela encontra clínicas despreparadas para escutar. Escutar de verdade.
O racismo como estrutura de adoecimento psíquico
Como ensina Frantz Fanon, em Pele negra, máscaras brancas, o racismo não se limita à violência explícita. Ele se infiltra na linguagem, no olhar, no gesto, no não dito. Ele é um trauma que se repete, que molda subjetividades, que fragmenta o desejo.
Fanon afirma:
“O negro não é um homem. Ele é um homem em processo de tornar-se.”
Essa frase resume a violência do apagamento — de ter sua humanidade constantemente negada.
Sueli Carneiro acrescenta, em A construção do outro como não-ser, que a branquitude estrutura-se como norma e universalidade, enquanto o negro é construído como “outro”, como desvio, como ausência.
Portanto, um setting clínico que não se posiciona politicamente naturaliza essa lógica de exclusão.
Por que a psicanálise afrocentrada é necessária?
A clínica racializada rompe com a falsa ideia de neutralidade. Ela reconhece que:
O racismo é estruturante da experiência psíquica de pessoas negras;
A subjetividade negra é construída em meio a negações e imposições históricas;
O sofrimento psíquico da população negra é também efeito de uma coletividade ferida;
A cura exige escuta, mas também exige posicionamento.
Como pontua bell hooks em Tudo sobre o amor, amar de forma radical é escutar sem tentar apagar. É estar com o outro na dor, mas também na dignidade. Uma clínica afrocentrada não busca ajustar o sujeito ao mundo racista — busca criar espaço para reconstruir seu desejo com liberdade.
A clínica como território de reconstrução
Quando a fala preta é ouvida com respeito e compreensão, ela se torna território fértil para cura. A escuta racializada não é apenas técnica — ela é política, histórica e afetiva.
Ela permite que o sujeito negro:
Reconheça a dor que não era nomeada;
Reivindique o direito de existir fora da lógica do desempenho e da força;
Resgate memórias, ancestralidade, identidade;
Desconstrua culpas que não são suas;
Reconstrua o desejo — de viver, de descansar, de amar, de se libertar.
Quando uma mulher negra procura terapia e diz: “Preciso de alguém que entenda o que eu vivo sem que eu tenha que explicar o tempo inteiro” — ela está pedindo algo que vai além da escuta clínica tradicional.
Ela está pedindo uma escuta comprometida com a sua história. Com a sua cura. Com a sua vida.
Quando a fala é preta, a cura é profunda.E ela começa quando a escuta também é preta, crítica e antirracista.
Referências bibliográficas
Souza, Neusa Santos. Tornar-se negro. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
Fanon, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
Carneiro, Sueli. A construção do outro como não-ser. Tese de doutorado, USP, 2005.
hooks, bell. Tudo sobre o amor. Elefante, 2020.
Munanga, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999.








Comentários