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O silêncio que adoece: entre repressão e sobrevivência

Quando o “ser forte” vira prisão, o silêncio vira ferida — e falar torna-se parte da cura.


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Para muitas pessoas negras, o silêncio não é escolha — é herança.Silêncio diante da dor, diante do racismo cotidiano, diante da violência simbólica e física que atravessa os corpos negros desde a infância.

Aprendemos desde cedo a calar:

  • Para não sermos taxadas de agressivas.

  • Para não incomodar.

  • Para parecer gratas.

  • Para evitar conflitos que sabemos que, muitas vezes, perderemos.

Mas esse silêncio tem um preço: ele adoece.Este artigo mergulha nos impactos psíquicos da repressão emocional em pessoas negras e propõe caminhos possíveis para fazer da fala um instrumento de cura.


Silenciar como forma de sobrevivência

Frantz Fanon, em Pele Negra, Máscaras Brancas, mostra como pessoas negras, em contextos colonizados, constroem máscaras subjetivas para sobreviver em uma sociedade que nega sua humanidade.Silenciar, neste sentido, torna-se estratégia. É a tentativa de evitar punições, de ser aceito, de se proteger da rejeição ou da hostilidade.

Ao longo da história, pessoas negras aprenderam a “engolir o choro”, “mostrar força”, “não reclamar”, porque a sociedade não acolhe sua dor — apenas cobra resiliência.

Essa postura, no entanto, cobra um preço alto:

  • Transtornos de ansiedade e depressão.

  • Somatizações (doenças físicas ligadas ao sofrimento emocional).

  • Baixa autoestima.

  • Relações afetivas atravessadas por medo, controle e silenciamento.


A psicanálise como espaço de escuta

A clínica psicanalítica tradicional, durante muito tempo, negligenciou essas questões. Neusa Santos Souza, em Tornar-se negro, aponta como o sofrimento psíquico negro foi invisibilizado na psicanálise hegemônica — que partia de um sujeito branco, europeu e universal.

A escuta racializada propõe uma virada ética:Ela considera o lugar social da pessoa negra, sua história, seus traumas raciais e os atravessamentos da branquitude em sua constituição subjetiva.

Mais do que falar sobre o racismo, a clínica afrocentrada acolhe as dores que o racismo produz, sem minimizá-las ou psicanalizá-las como traumas genéricos.

Na prática, isso significa:

  • Validar a raiva como afeto legítimo, e não como disfuncional.

  • Nomear o racismo institucional como causa de sofrimento, e não responsabilizar a vítima por “não saber lidar”.

  • Reconhecer que, às vezes, o que parece desorganização emocional é, na verdade, sintoma de séculos de silenciamento.


Quando “ser forte” vira armadilha

A figura da mulher negra forte, da que aguenta tudo, que cuida de todos, mas raramente é cuidada, foi construída como mito social.Sueli Carneiro chama atenção para esse “lugar de força compulsória” — que é, na verdade, uma armadilha.

A exigência constante de fortaleza produz culpa quando a fragilidade aparece.E como é que se expressa fragilidade, quando tudo o que a sociedade espera é resistência?

É por isso que a escuta clínica precisa dizer, com todas as letras:Você pode fraquejar. Você pode chorar. Você não precisa ser forte o tempo todo.Seu cansaço é legítimo. Seu silêncio, compreensível. Mas ele não precisa ser eterno.


Falar como gesto político e terapêutico

Romper o silêncio, nesse contexto, é gesto de sobrevivência — e de reumanização.

bell hooks, em Ensinando a transgredir, defende que a fala negra é um ato de resistência. Ela afirma:

“Falar, quando fomos ensinados a não falar, é um gesto subversivo. Falar é criar mundo, é reivindicar a nossa existência como sujeitos pensantes.”

No espaço clínico afrocentrado, falar é:

  • Descolonizar afetos.

  • Dar nome ao que antes era só incômodo.

  • Resgatar narrativas interrompidas.

  • Restaurar a dignidade de sentir.


O silêncio protegeu. Mas agora adoece.É hora de abrir espaço para a fala, para o choro, para a elaboração — sem medo de ser fraca, sem medo de incomodar.

A psicanálise racializada nos convida a esse movimento:romper o ciclo da repressão, acessar as emoções interditadas, fazer do cuidado uma prática possível — e da escuta, uma ferramenta de cura.


Referências bibliográficas

  • Fanon, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. EDUFBA, 2008.

  • hooks, bell. Ensinando a transgredir. WMF Martins Fontes, 2013.

  • Santos Souza, Neusa. Tornar-se negro. Graal, 1983.

  • Carneiro, Sueli. A construção do outro como não-ser. Tese, USP, 2005.

  • Ribeiro, Djamila. O que é lugar de fala? Letramento, 2017.

 
 
 

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