O mito da mulher negra forte: quando a resistência também adoece
- Luciana Tudeia
- 30 de jul.
- 3 min de leitura
A romantização da força e o direito ao cuidado, ao descanso e à humanidade

“Guerreira.”
“Resistente.”
“Exemplo de força.”
Essas palavras são frequentemente usadas para descrever mulheres negras. À primeira vista, podem parecer elogios. Mas, como lembra Audre Lorde, “cuidar de mim mesma não é autoindulgência, é autopreservação – e isso é um ato de guerra política.”
Neste artigo, desmontamos o mito da mulher negra forte — uma narrativa que desumaniza, sobrecarrega e adoece — e propomos o cuidado como prática de liberdade e reconstrução subjetiva.
A origem do mito: uma construção racista
O imaginário da mulher negra como naturalmente forte, resistente à dor e capaz de suportar tudo é herança direta da colonização. Durante a escravidão, mulheres negras eram forçadas a trabalhar sob condições extremas e a cuidar dos filhos das famílias brancas, mesmo enquanto viam os seus serem vendidos ou mortos.
Esse cenário construiu a imagem da "mãe preta" — submissa, incansável, sempre disponível para servir. Essa imagem foi reproduzida na literatura, no cinema, nas novelas e nos discursos sociais. Ela naturaliza a ideia de que mulheres negras são feitas para resistir, e não para viver plenamente.
Grada Kilomba, em Memórias da Plantação, aponta como essa construção está associada à negação da dor da mulher negra:
“Não importa o quanto doa, a mulher negra deve continuar. Porque não há espaço para o colapso de quem nunca foi considerada totalmente humana.”
A armadilha da fortaleza
Ao longo da vida, mulheres negras são ensinadas a:
Engolir o choro para não parecerem fracas.
Trabalhar o dobro para provar competência.
Serem mães, filhas, chefes de família, cuidadoras — ao mesmo tempo.
Suportar o racismo, o machismo e o classismo — sozinhas.
Essa condição constante de “superação” gera um adoecimento profundo. Como alerta Neusa Santos Souza, a mulher negra aprende desde cedo a negar suas dores para sobreviver num mundo que a deslegitima. O resultado é exaustão, depressão, ansiedade e sentimentos de insuficiência crônica.
Entre o desempenho e o silêncio
A escritora bell hooks escreve em Tudo sobre o amor que mulheres negras muitas vezes não sabem o que é amor no sentido do cuidado e do acolhimento:
“Aprendemos que devemos amar os outros, mesmo que isso custe a nós mesmas.”
Essa lógica transforma a mulher negra em uma “máquina de dar conta”. Isso faz com que muitas delas evitem pedir ajuda, recusem descanso, ou se sintam culpadas por desejar parar.
Além disso, quando adoecem, é comum que seus relatos sejam desconsiderados ou minimizados. O racismo institucional na saúde reforça a ideia de que sua dor não é legítima.
Romper com o mito: cuidar é político
Romper com o mito da força não significa recusar a luta, mas recusar o sacrifício como regra de existência.
Isso implica:
Aceitar a própria vulnerabilidade como parte da condição humana.
Buscar redes de apoio horizontais e solidárias.
Recusar relações que demandam servidão emocional.
Fazer terapia com profissionais que reconheçam a dimensão racial do sofrimento.
Exigir políticas públicas de cuidado e acesso à saúde mental.
Sueli Carneiro nos lembra que não há empoderamento sem saúde mental. E não há saúde mental sem descanso, escuta e reparação.
Ser mulher negra não é sinônimo de ser inquebrável. A resistência também precisa parar, respirar e se reconstruir. Romper com o mito da fortaleza é um gesto de coragem — e de cuidado com as próximas gerações.
Você não precisa ser forte o tempo todo.Você pode ser inteira, humana, contraditória, cansada — e ainda assim, profundamente potente.
Referências bibliográficas
hooks, bell. Tudo sobre o amor. Elefante, 2020.
Kilomba, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó, 2019.
Souza, Neusa Santos. Tornar-se negro. Graal, 1983.
Lorde, Audre. Sister Outsider. Crossing Press, 1984.
Carneiro, Sueli. Escritos de uma vida. Companhia das Letras, 2023.








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