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Por que a clínica precisa ser racializada?

A saúde mental da população negra exige mais do que escuta neutra — exige escuta crítica e comprometida.

Luciana Tudeia
Luciana Tudeia

No Brasil, falar sobre saúde mental sem considerar o racismo é ignorar uma das principais causas de adoecimento psíquico da população negra. A clínica tradicional, estruturada sob paradigmas brancos e eurocentrados, muitas vezes reproduz silenciamentos históricos, tornando o espaço terapêutico mais um lugar de exclusão. É por isso que defendemos a urgência de uma clínica racializada, que reconheça o impacto do racismo estrutural na subjetividade negra e promova, de fato, um cuidado ético, crítico e reparador.


A psicanalista Neusa Santos Souza, em sua obra Tornar-se negro, afirma que a estrutura do racismo opera como uma marca permanente sobre o corpo e a psique de pessoas negras, desde a infância até a vida adulta. Ela destaca como a construção da identidade negra, em uma sociedade que valoriza a branquitude como padrão, é atravessada por experiências de rejeição, negação e exclusão, muitas vezes internalizadas como fracasso pessoal.

Assim, a clínica racializada parte do princípio de que não existe neutralidade possível quando o sofrimento é estrutural. Como disse Frantz Fanon, "o racismo não é uma opinião, é um crime", e seus efeitos estão presentes nas expressões mais íntimas do sujeito colonizado — na linguagem, nos afetos, no espelho.


O que é uma clínica racializada?

Não se trata apenas de atender pessoas negras. Uma clínica racializada é um espaço que reconhece que o sofrimento da população negra não pode ser tratado com os mesmos pressupostos universais que regem o cuidado branco.

É uma prática que exige:

  • Conhecimento histórico e político sobre os impactos do colonialismo e da escravização no imaginário coletivo;

  • Compreensão das dinâmicas de branquitude, como apontado por Sueli Carneiro, que coloca o branco como referência universal e o negro como “outro” a ser corrigido;

  • Escuta qualificada, que não patologize a raiva negra, o medo constante ou o desejo de desaparecimento — mas que entenda esses sentimentos como efeitos legítimos de uma sociedade violenta e desigual.


A potência da escuta entre pares

Como diz bell hooks, o amor é também ato político — especialmente quando rompe o ciclo da desumanização. Uma clínica afrocentrada é um território de cuidado onde, ao ser escutada por alguém que compartilha da mesma experiência de racialização, a pessoa negra encontra não só acolhimento, mas também reconhecimento.

Isso não significa uma identificação absoluta entre analista e paciente, mas sim a possibilidade de não precisar se traduzir. Como afirmam muitas mulheres negras que passaram por esse processo: "pela primeira vez, fui entendida sem precisar explicar o básico."


O compromisso com uma psicanálise afrocentrada é um compromisso com a reparação, com o fortalecimento subjetivo e com a reconstrução do desejo em uma sociedade que, por séculos, nos ensinou a não desejar. É romper com o silêncio, com a vergonha, com o autoapagamento — e abrir espaço para que pessoas negras possam existir por inteiro.


Cuidar da saúde mental da população negra é, antes de tudo, um ato de justiça.

 
 
 

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