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Estou cansada. E com razão.

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O adoecimento silencioso das mulheres negras e a urgência do cuidado com sua saúde mental


“Você é forte.”

“Você aguenta.”

“Você sempre dá um jeito.”

Essas frases, muitas vezes tratadas como elogios, são na verdade expressões de uma lógica cruel: a da desumanização da mulher negra. Nesse sistema, ela não pode adoecer, não pode fraquejar, não pode parar. O resultado? Um corpo exausto, uma mente sobrecarregada, uma subjetividade invisibilizada.

Este artigo discute o adoecimento emocional das mulheres negras como consequência direta do racismo, do sexismo e da sobrecarga histórica imposta a essas mulheres — e afirma que o cuidado também é uma forma de resistência.


O “mito da fortaleza” e a negação da dor

Desde os tempos coloniais, o corpo da mulher negra foi visto como instrumento: para o trabalho, para o cuidado de outros, para a exploração. Essa narrativa deu origem ao mito da mulher negra forte, que sustenta a ideia de que ela pode suportar tudo — sem se abalar, sem precisar de apoio.

Como alerta Patricia Hill Collins, em Black Feminist Thought, essa imagem produz uma falsa noção de resistência, que não reconhece a dor como legítima e não permite vulnerabilidade.

A psicanalista Neusa Santos Souza, ao estudar o sofrimento psíquico de pessoas negras, pontua que a negação da dor pela sociedade e por si mesmas leva ao adoecimento. Ela escreve:

“Ao ser obrigada a adaptar-se a um ideal branco de humanidade, a pessoa negra aprende a desconfiar da própria dor, a esconder sua ferida.”


Cansaço, sobrecarga e adoecimento: um combo racializado

Esse adoecimento não acontece por fragilidade, mas por acúmulo de violência:

  • Microagressões no ambiente de trabalho;

  • Racismo obstétrico nos serviços de saúde;

  • Desigualdade no cuidado doméstico;

  • Solitude afetiva e invisibilidade nos relacionamentos;

  • Culpabilização materna;

  • Solidão nos espaços acadêmicos e profissionais.

A psicóloga norte-americana Joy DeGruy nomeia isso como Síndrome do Pós-Traumático da Escravidão — os efeitos psíquicos da escravidão transgeracional que ainda se manifestam em corpos negros exaustos, hipervigilantes e adoecidos.


“Estou cansada de ser forte”

Essa frase não é desabafo — é denúncia. A escritora bell hooks, em Tudo Sobre o Amor, denuncia como as mulheres negras foram treinadas a cuidar dos outros, mas raramente ensinadas a cuidar de si. Isso cria uma cisão entre o corpo e o afeto, entre a necessidade e a permissão para receber cuidado.

Nas palavras de hooks:

“O autocuidado, para mulheres negras, é um ato político de ruptura com o sistema que insiste em nos explorar.”

Romper com o mito da fortaleza é, portanto, ato revolucionário. Reconhecer o cansaço é permitir a cura. Nomear a dor é iniciar a libertação.


A importância de uma escuta racializada

A escuta clínica, quando racializada, não patologiza a mulher negra. Ela reconhece que sua dor é real, legítima e socialmente construída. Ela entende que o choro não é fraqueza, que a raiva não é exagero, que o silêncio não é apatia — são formas de sobrevivência.

Na clínica afrocentrada, o acolhimento acontece com escuta atenta às marcas da raça, do gênero, da classe. Porque, como diz Sueli Carneiro, “o silêncio é uma forma de morte simbólica”.


Cuidar de si para continuar viva

  • Fazer terapia com uma profissional negra pode significar:

    ✔️ não precisar explicar a dor desde o começo;

    ✔️ sentir-se validada;

    ✔️ poder desmontar sem medo de julgamento;

    ✔️ aprender a colocar limites e dizer não.

  • Cuidar de si é reconectar-se com a ancestralidade, com o corpo, com a vida que deseja e merece viver.

  • Cuidar de si é sair da sobrevivência e entrar na possibilidade de vivência plena.


O cansaço das mulheres negras é coletivo, ancestral, real. Mas a resistência também é. A escuta, o descanso e o cuidado não são luxo — são estratégias de continuidade da vida negra.

É tempo de parar de romantizar a força.É tempo de valorizar o descanso.É tempo de afirmar: “estou cansada” é também um grito de liberdade.


Referências bibliográficas

  • hooks, bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Elefante, 2020.

  • Souza, Neusa Santos. Tornar-se negro. Graal, 1983.

  • Collins, Patricia Hill. Black Feminist Thought. Routledge, 2000.

  • DeGruy, Joy. Post Traumatic Slave Syndrome. Uptone Press, 2005.

  • Carneiro, Sueli. Escritos de uma vida. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.

 
 
 

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